CAMBEDO DA RAIA: A MEMÓRIA RECUPERADA
(77 ANOS DEPOIS)
Autor: Xerardo Pereiro
Antropólogo da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)
CRIA – Centro em Rede de Investigação Antropológica
Correio electrónico: xerardopereiro@utad.pt
Em 19 de dezembro de 2023 cumpriram-se 77 anos dos trágicos acontecimentos de Cambedo da Raia, ocorridos em 1946. Cambedo da Raia é uma aldeia “raiana” ((trans)fronteiriça) no município de Chaves (distrito de Vila Real, Norte de Portugal). Ela pertence à freguesia de Vilarelho da Raia e é lindeira e fronteiriça com o município de Oimbra (Galiza). É uma aldeia que pertenceu ao Reino de Espanha até o 1864, data em que se estabeleceu o Tratado de Limites entre Portugal e o já Estado Espanhol, segundo o qual acordou-se que as aldeias raianas de Cambedo, Soutelinho e Lamadarcos integrariam Portugal e os lugares do Couto Mixto, Santiago, Meaus e Rubiás ficariam parte do estado espanhol. É este um dado e um fato que desmascara o tópico, já convertido em mito discursivo e escolar, de que Portugal e Espanha têm as fronteiras mais antigas de Europa.
A vida da pequena comunidade de Cambedo, na meia montanha flaviense, caminho do Barroso, a 18 km de distância da fértil veiga de Chaves, foi a própria de uma comunidade agrária do Norte interior de Portugal, que complementou a sua atividade agrária com o contrabando. Uma vida numa periferia, longe de Lisboa e da capital concelhia Chaves, que forjou ao longo da história solidariedades e cumplicidades com os “vizinhos” galegos, com os quais mantiveram relações de parentesco, amizade e vizinhança internacional. Mas em 1946, sete anos após a conclusão da guerra civil espanhola em 1 de abril de 1939, esta comunidade veio a sofrer as consequências do seu apoio aos republicanos e galeguistas que por lá se refugiavam e fugiam na procura da sobrevivência e de um espaço de liberdade.
Em 19 de dezembro de 1946, logo de concluir a 2ª guerra mundial e o franquismo notar que a vitória dos aliados não lhe iria incomodar, a aldeia foi arrodeada por maís de mil elementos da “Guardia Civil” espanhola, GNR portuguesa e tropas militares espanholas e portuguesas, à procura de 4 guerrilheiros da “Banda de Juan”, uma banda de defensores da democracia republicana e membros organizados da resistência antifranquista e antifascista, que tinha relações de apoio, compromisso e solidariedade na aldeia. A aldeia foi bombardeada com certa de 70 morteiros e a repressão física, psicológica e moral foi brutal contra os guerrilheiros galegos e os vizinhos de Cambedo (cf. Martínez-Risco, 2004; AA.VV., 2021a e 2021b). A maioria dos vizinhos foram presos pela PIDE portuguesa, torturados e castigados duramente (alguns deles foram desterrados para a prisão do Tarrafal em Cabo Verde).
As consequências deste episódio repressivo, articulado entre o salazarismo e o franquismo para acabar com a resistência na raia seca, foram as seguintes: Bernardino García Garcia (de Viana do Bolo, Galiza) acabou suicidando-se logo de lutar durante horas; Juan Salgado Riveiro (natural de Oimbra, Galiza) acabou sendo assassinado, ele era músico, libertário e membro da guerrilha de Mario Langullo. Demetrio García, natural de Oimbra (Galiza) esteve 19 anos preso, uma grande parte no campo de concentração de Tarrafal (Cabo Verde). Manuel Barcia (cunhado do anterior) esteve várias vezes em prisão. Igualmente, muitos vizinhos de Cambedo foram interrogados, torturados e assediados durante vários anos depois desde acontecimento de dezembro de 1946.
O trauma criado na comunidade pela repressão da pós-guerra civil espanhola foi descoberto muitos anos depois pela antropóloga Paula Godinho (Universidade Nova de Lisboa) num trabalho de campo na década de 1980. Paula foi quem, com enorme afeto, sensibilidade, empatia, cumplicidade, compromisso e diálogo ético com os vizinhos, de ajudar a comunidade a destapar a memória escondida e a liberar-se do medo, que permanecia ainda nos mais velhos. Ela também foi capaz de produzir um conhecimento antropológico bem organizado e de dar conta ao mundo de um lugar de memória da repressão fascista muito perto de nós, mas nada conhecido e menos reconhecido (cf. Godinho, 2014). O seu trabalho de recuperação e reconstrução da memória social da aldeia (cf. Pereiro, 2021), mostra não só a importância de uma antropologia comprometida com os valores humanos democráticos, como também o valor das histórias de vida, dos relatos de vida e das fontes orais no estudo da memoria social e histórica das nossas sociedades, em complemento e articulação com os documentos oficiais e a evidencias materiais. Ao próprio trabalho de Paula Godinho juntaram-se historiadores (ex. Luís Risco, José Baptista…), arqueólogos e também ativistas e defensores da República como David Cortón. Inspirados nestas memórias sociais recuperadas xurdiram programas de investigação, como um que tive o gosto de coordenar junto dos alunos do antigo Pólo da UTAD em Chaves, os quais descobriram uma parte do seu passado e reconheceram nessas memórias os lados terríveis do ser humano, e também a importância da recuperação da memória social e histórica para refletir melhor sobre a mudança social, o presente e o futuro. Os relatos de vida recolhidos por estes estudantes universitários estão hoje a ser estudados por historiadores galegos e portugueses e a iluminar com luz intensa um foco pouco conhecido da história ibérica.
Além de mais, todo este processo de recuperação da memória social da aldeia do Cambedo (cf. Risco, 2004; AA. VV, 2021a; La Voz de Galicia, 2004; Seixo, 2004), serviu também de inspiração para trabalhos audiovisuais como os seguintes:
a) “Cambedo” (1996), de Xosé Lois Santiago (diretor).
b) “Cambedo: A guerra passou pela aldeia” (RTP) (2009), de Maria Júlia Fernandes (realizadora) e Rui Miranda (editor), online em: https://www.youtube.com/watch?v=Kd36jJg_zkY
c) “Silêncio: Cambedo da Raia 1946” (2014), de António Loja Neves e José Alves Pereira.
d) “A memória da raia” (2018), da autoria de Miriam González Francisco, Iris Justo Rodríguez e Andrea Pérez Justo.
E os arqueólogos Rui Gomes Coelho e Xurxo Ayán Vila fizeram também trabalhos arqueológicos na aldeia, na bombardeada casa de Albertina Tiago, e criaram em 2018 uma página no Facebook muito elucidativa e muito pedagógica em relação com os resultados dos seus trabalhos, com o título “Cambedo 1946 - Arqueologia da Resistência na Raia Galego-Portuguesa” (ver: https://www.facebook.com/cambedo1946).
Em 13 de dezembro de 2021 teve lugar na Torre do Tombo em Lisboa um encontro científico, organizado por Paula Godinho e Xurxo Ayán, de reconhecimento deste lugar de memória, hoje cheio de placares e símbolos de pedestrianismo, e que os vizinhos acabaram por tolerar e aceitar com agrado. Hoje é uma aldeia mais livre, submetida à prova de hospitalidade e sempre com bom e caloroso acolhimento de quem a visita (curiosos, investigadores e turistas culturais). Cambedo da Raia vai ultrapassando, aos poucos, o estereótipo de “aldeia maldita” e de “aldeia atrasada” de antanho, para resinificar-se como um lugar de memória democrática, solidária, internacionalista e humanista. É o seu exemplo de como um lugar pequeno pode ser grande para a humanidade. O seu profundo sentido da humanidade representou e representa uma lição para o mundo e para a construção da paz, tão necessária quanto mais nestes tempos convulsos atuais.
Hoje em dia, na cidade de Ourense há uma praça com o nome de “Cambedo da Raia”, memória escrita no espaço público e reconhecimento solidário dos galegos para com os portugueses, algo que algumas instituições querem ocultar ou desvalorar porque em parte questiona a realidade dos marcos nacional-estatais e a ideia força de “cidadão nacional”, que a União Europeia veio também a questionar, ainda que parcialmente. É esta rua uma homenagem aos heroicos vizinhos de Cambedo da Raia, que arriscaram as suas vidas em prol da vida e sobrevivência dos galegos republicanos e galeguistas após do golpe de estado franquista de 1936.
Referências
-AA.VV. (2021a): Cambedo da raia (Solidariedade galego-portuguesa silenciada). Santiago de Compostela: Positivas.
-AA.VV. (2021a): Cambedo da raia (Solidariedade galego-portuguesa silenciada). Lisboa: Tigre de Papel.
-GODINHO, Paula (2014): “Silêncio, de António Loja Neves e José Manuel Alves Pereira”, em Esquerda.net. Online em: https://www.esquerda.net/dossier/silencio-de-antonio-loja-neves-e-jose-manuel-alves-pereira/32066
-LA VOZ DE GALICIA – OURENSE (2004): “Los vecinos de Cambedo da Raia reciben un homenaje republicano”, em La Voz de Galicia, 15 de abril de 2004. Online em https://www.lavozdegalicia.es/noticia/ourense/2004/04/15/vecinos-cambedo-da-raia-reciben-homenaje-republicano/0003_2592760.htm
-MARTÍNEZ RISCO DAVIÑA, Luís (coord.) (2004): O Cambedo da Raia 1946. Soliariedade galego-portuguesa silenciada. Ourense: Amigos da República -Taller Auria.
-PEREIRO, Xerardo (2021): “Memoria: retos y desafíos en el campo patrimonial y museístico”, em Arrieta Urtizberea, Iñaki e Díaz Balerdi, Iñaki (ed.): Patrimonio y museos locales: temas clave para su gestión. La Laguna Pasos, pp. 257-276. Online em: http://pasosonline.org/es/colecciones/pasos-edita/
-SEIXO, Marcos (2004): “A guerra do Cambedo. Relato da represión luso-española da guerrilla galega”, em A Nosa Terra - Cultura, nº 1132, 10-16 de junho de 2004, p. 28. Online em: https://www.aelg.gal/resources/centrodoc/members/paratexts/pdfs/autor87/PT_paratext2231.pdf
AGRADECIMENTOS
O Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) é uma unidade interun
iversitária que existe desde 2007 como unidade de I&D da FCT e foi classificada com Muito Bom nas avaliações internacionais de Unidades de I&D de 2007, 2013 e 2017. Desde 2021, é um Laboratório Associado do Estado através da sua participação no consórcio IN2PAST - Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território. Financiada pela FCT, I. P. (UIDB/04038/2020 e UIDP/04038/2020)”.
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